segunda-feira, 3 de agosto de 2015

[RE]CONHECENDO A MATA BRANCA

A Caatinga despertava em mim uma imensa curiosidade. Como será a mata branca? Em que aspectos ela se parece com a minha ideia preestabelecida de mata? Para alguém nascida e criada na Amazônia, habituada a entender a natureza a partir dos tons de verde intensos e exuberantes da floresta tropical úmida e da abundância de água em toda a dinâmica da minha região, era difícil [e extremamente necessário] entender o ciclo da vida sob um novo olhar.
Há duas semanas, começava uma viagem de carro a partir de Belém (PA) com destino ao sudeste do Piauí, especificamente, à cidade de São Raimundo Nonato, que fica a 520 km de distância de Teresina. O objetivo principal da jornada, que consistiu em dois dias de direção (parando para dormir) e totalizou 1.430 km (apenas de ida), era visitar o Parque Nacional da Serra da Capivara, uma Unidade de Conservação Federal criada em 1979, com área de 135.000 hectares.
O Parque – declarado Patrimônio Cultural da Humanidade em 1991, pela Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) – possui a maior concentração de sítios arqueológicos com arte rupestre pré-histórica do mundo e é voltado à preservação da Caatinga: único bioma exclusivamente brasileiro, que em tupi-guarani significa “mata branca” (ka’a = mata e tinga = branca).

Vegetação característica do semiárido.

Não raro se vê menções à Caatinga como um ecossistema pobre em biodiversidade e em variedade de paisagens, principalmente, quando ela é comparada às florestas tropicais. Apesar de haver, de fato, menor diversidade de plantas e animais em ambientes semiáridos, a fauna e a flora nessas áreas são adaptadas às condições enérgicas, ocorrendo um alto índice de espécies endêmicas, ou seja, que só existem naquele determinado local. E aí mora uma parte importante da magnitude desse nosso bioma!

Paisagem a partir da Toca do Veado, na Serra Branca.

Lagartixa-de-lajedo (Tropidurus helenae), espécie que só ocorre na Serra da Capivara.

Durante meu encontro com a Caatinga, não só tive certeza de que ela é dona de uma riqueza enorme como experimentei sensações que até então desconhecia ao caminhar na mata. Como exemplo, os pássaros são muito mais fáceis de serem avistados ali do que quando se está na floresta amazônica; e para minha alegria, os passeios foram a todo instante coroados com oportunidades de observar as aves (corrupião, pica-pau, arapaçu, can-can, jacu, andorinha, entre outras). O aspecto predominantemente seco e arbustivo da vegetação, contraposto às regiões de microclima que encontramos entre as rochas, faz com que se note e valorize enormemente a presença de árvores de maior porte, como um juá ou uma gameleira – sentimento menos percebido na floresta tropical. Apesar do sol intenso e constante nos percursos, o clima seco me impediu de ter o corpo suado e as roupas molhadas nas trilhas, condição que parece quase inerente ao ato de andar na mata para alguém da Amazônia. Ao final do dia, a temperatura caía e fazia as noites agradáveis como nunca experimentei em Belém.

O Corrupião (também conhecido como Concriz ou Sofrê).

O juá.

Mas, infelizmente, não é só em relação às características biológicas ou paisagísticas que se demonstra com frequência ignorância ao contar [ou ao aceitar] a história da Caatinga como sendo um lugar de pobreza. Também é assim na maioria das vezes em que se fala da condição humana lá. Nesse ponto, quem nasce no Norte, sabe muito bem o que é ser lido de forma equivocada, a partir de uma visão que restringe, generaliza e trata toda a beleza da diferença como um elemento só, negativo e, em certos casos, até pejorativo.
Como nos alerta a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, se ouvimos somente uma única história sobre outra pessoa ou lugar e assumimos que aquela é a verdade, corremos o risco de reproduzir um discurso sem sentido ou de ter pena ou desgosto por algo antes mesmo de ver.
Quando estava lá, percebendo todo o encanto e a vivacidade do ambiente natural, dos trabalhos, das organizações locais, dos povoados e dos moradores, lembrei da pergunta que vários amigos me fizeram antes da viagem: por que escolhi justo o interior do Piauí para passar as férias? E o único pensamento que consegui ter desde o dia em que cheguei na Serra da Capivara era que eu já deveria ter ido e que deverão ir todos.
“Para quê?”, os mais insistentes [e descrentes] podem querer saber. Para aprender que a experiência é grandiosa quando se está aberto a vivenciar e que nem tudo que se ouve é verdadeiro. Para descobrir que até mesmo o ditado popular nordestino que diz “mandacaru não dá encosto nem sombra” pode ser contrariado quando se adentra o sertão com o coração.

A sombra revigorante do mandacaru próximo à Pedra Furada.

Assim, além de todas as sutis surpresas que ganhei como presentes ao [re]conhecer a Caatinga, está o maior deles: encontrar as pessoas que fazem essa mata branca tão grandiosa. Nesse sentido, dedico minha enorme gratidão e admiração, em especial, ao condutor de trilhas Mário Afonso (Marinho), com quem tive a alegria de conviver durante os dias lindos no Parque e quem me ensinou, de forma simples, despretensiosa e muito valiosa, tantas lições [inclusive a do mandacaru].

Conhecimento e amizade compartilhados com Marinho. Foto: Ivan Vasconcelos.